China já domina a indústria automotiva global – e o mundo assiste paralisado
Por Pedro Kutney
A ascensão da indústria automotiva chinesa é um dos fenômenos econômicos mais rápidos e profundos da história moderna. Em menos de uma década, o país transformou-se no centro gravitacional de toda a cadeia produtiva automotiva mundial — dos insumos e componentes até a engenharia de projetos completos — e segue ampliando sua influência sobre fabricantes ocidentais que, diante do avanço avassalador, parecem atordoados e sem reação.
Mesmo com tarifas e barreiras impostas por Estados Unidos, Canadá e Europa, a presença chinesa é inescapável. Hoje, praticamente todos os veículos do planeta dependem de alguma forma da China, seja por peças, insumos ou tecnologia embarcada.
Dependência estrutural
O movimento começou quando as montadoras perceberam que poderiam economizar bilhões comprando projetos, plataformas e componentes diretamente de fornecedores chineses. Em um cenário de margens apertadas, essa dependência cresceu de forma vertiginosa.
Atualmente, 80% das baterias automotivas globais são produzidas por empresas chinesas, e o país detém quase o controle total sobre os minerais de terras-raras — fundamentais para motores elétricos, sistemas eletrônicos e ímãs de alta performance.
O domínio é tamanho que, em 2020, no auge da pandemia, o presidente Xi Jinping sintetizou a ambição nacional com uma frase que hoje soa profética:
“Tornar o mundo mais dependente da China. Tornar a China menos dependente do mundo.”
Parcerias estratégicas (e inevitáveis)
Sem alternativas reais, grandes montadoras ocidentais optaram por se aliar às chinesas. A lista de parcerias cresce a cada ano:
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Audi e SAIC desenvolvem juntas o elétrico E5 Sportback.
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Volkswagen usa tecnologia da Xpeng e planeja equipar a nova Amarok com sistemas híbridos da SAIC.
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Toyota trabalha com a GAC em novos elétricos.
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Renault importa plataformas da Dongfeng e desenvolve o novo Twingo em Xangai.
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GM, por meio da SAIC-Wuling, já produz veículos elétricos populares vendidos como Chevrolet em mercados emergentes, inclusive no Brasil.
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Stellantis importa modelos da parceira Leapmotors.
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E até a Ford, cujo CEO Jim Farley chegou a elogiar abertamente o SU7 da Xiaomi, negocia cooperação tecnológica na China.
O risco é claro: as montadoras tradicionais podem se tornar revendedoras de tecnologias desenvolvidas por terceiros, perdendo o controle sobre sua própria identidade industrial.
O império dos insumos
Mesmo países que bloqueiam a entrada de veículos chineses, como os EUA, não conseguem evitar a dependência de seus insumos.
O governo chinês, por sua vez, já restringe a exportação de terras-raras e maquinários de refino — uma medida que ameaça paralisar fábricas no Ocidente e funciona como resposta às sanções impostas por Washington.
A substituição desses materiais é lenta e cara. O Brasil, por exemplo, tem a segunda maior reserva de terras-raras do mundo, mas o desenvolvimento de fornecedores alternativos pode levar décadas.
Brasil: dependência crescente
O Brasil é um retrato fiel dessa nova ordem industrial.
De janeiro a setembro de 2025, o país importou US$ 3,3 bilhões em autopeças da China, alta de 19,6% sobre o mesmo período de 2024, segundo o Sindipeças. A China responde por 18,4% de todas as peças importadas pelo setor automotivo nacional — mais que o dobro dos Estados Unidos, Japão ou Alemanha.
E a tendência é de aumento. Com o início das produções locais da BYD e da GWM, os volumes de importação de componentes chineses devem crescer ainda mais a partir de 2026, já que as montadoras operam, inicialmente, com kits praticamente totalmente importados.
O tsunami de veículos chineses
Com capacidade instalada de 50 milhões de veículos por ano — mais da metade da produção mundial —, a China tornou-se também o maior exportador de automóveis do planeta.
O país saltou de 1 milhão de unidades exportadas em 2020 para cerca de 7 milhões em 2025, alcançando mais de 100 países.
A consequência é um desequilíbrio global: marcas europeias e americanas perdem participação em seus próprios mercados e enfrentam cortes massivos de empregos. Volkswagen, Mercedes-Benz e Bosch já anunciaram milhares de demissões.
Brasil no radar
Entre janeiro e setembro deste ano, 123,5 mil veículos chineses foram emplacados no Brasil, um crescimento de 51% em relação a 2024.
A participação já equivale a quase 7% do mercado nacional, e a China passou, pela primeira vez, a Argentina como segundo maior fornecedor de automóveis importados ao país.
A dominação consumada
A hegemonia chinesa não é uma possibilidade futura — é uma realidade.
Com o controle de matérias-primas, componentes e tecnologias, a China se tornou o eixo da indústria automotiva global.
E como resume o próprio CEO da Ford, Jim Farley:
“É a coisa mais humilhante que já vi.”
A corrida agora é para sobreviver em um mercado que já não gira mais em torno de Detroit, Stuttgart ou Tóquio — mas de Xangai, Shenzhen e Wuhan.
O novo mapa da mobilidade global
A revolução liderada pela China já não é apenas industrial — é civilizacional. Em menos de uma geração, o país redesenhou a geopolítica da mobilidade, transformando dependência tecnológica em instrumento de poder.
Hoje, o centro de gravidade da indústria automotiva mudou de endereço: não está mais em Detroit, Stuttgart ou Tóquio, mas em Xangai, Shenzhen e Wuhan.
Enquanto o Ocidente tenta reagir, a China acelera — exportando não só carros, mas influência, tecnologia e soberania industrial. O mundo que antes ensinava a fabricar automóveis agora aprende com quem dominou a cadeia de ponta a ponta.
E diante da velocidade dessa transformação, resta uma pergunta inevitável:
o futuro da indústria automotiva ainda será decidido nas pranchetas ocidentais — ou já pertence, de forma irreversível, à engenharia chinesa?
Por Pedro Kutney